sábado, 14 de agosto de 2010

UMA MADRUGADA DAQUELAS

O elevador demora. Ela se impacienta. Corre de um lado para outro. Sobe e desce as escadas do prédio. No corredor de entrada, acelera e desacelera a moto. Uma Yamaha 1100 cilindradas. Presente do pai fazendeiro no Mato Grosso. Logo ela sai para a rua. Freadas e desviadas bruscas. Cortadas de frente e cavalos-de-pau. Jaquetão preto de couro, calça de brim desbotado, fita vermelha na testa, cabelos longos se enroscando ao vento, ela desafia os passantes soltando as mãos do guidom, braços rasgando o ar, aos guinchos como no caratê.
Ela providencia assim todos os detalhes de um ambicioso projeto: produzir um vídeo clip do ensaio da sua banda de rock no JK onde mora. O namorado arranja as três rodinhas para adaptar numa banqueta alta, nesse tripé deve colocar a câmera de vídeo. Persistente, ela consegue ensinar ao namorado o manuseio da filmadora e se libera para tocar o seu contrabaixo. Ao anoitecer, cessa toda essa movimentação. Algumas horas de calmaria. Além da entrada do namorado no elevador mais cedo que o normal, o porteiro nada constata. Porém, passada a meia-noite, começa a notar um trânsito incomum de gente, carregando caixas dos mais diversos tamanhos e formatos.
Em estreitos limites, ela faz de tudo para racionalizar o espaço. No banheiro, almofadas, se amontoam em cima do vaso sanitário. Roupas, cobertas, toalhas, fogão, panelas, colchonete e outras miudezas estão atulhadas no box. Para o namorado dispor do máximo de movimento livre para as filmagens. As últimas instruções são dadas, ela testa a calma do corredor. Então se volta para dentro: “Vamos lá, pessoal!”
Ela faz gemer as cordas do contrabaixo, agita os quadris jogando as pernas como potra selvagem. A turma não fica para trás, aquece o mais que pode o ritmo ensurdecedor. A princípio, o namorado tenta focalizar as evoluções dela. Mas com o passar do tempo, ele se perde de tal forma que acaba estatelado no banheiro, a câmera voando por cima das panelas. O tripé da banqueta enfiado na cabeça, ele berra. Os metaleiros se assanham ainda mais. Uma madrugada daquelas, o porteiro roncando atrás do balcão, ninguém no Edifício que se animasse a dar um basta.

Um comentário:

Diná disse...

Souza

Que especial, que imaginação.
Lindo, lindo.
Diná