quarta-feira, 15 de junho de 2011

DESLUMBRAMENTO INEXORÁVEL

Guadalupe Soledad. Isso mesmo, Guadalupe Soledad, sem tirar nem por. Mulher franzina devido a sequelas de raquitismo na infância, sobrevivera até o fim de seus dias à custa de fervorosas preces e insistentes tratamentos a base de ervas medicinais. E fora batizada com esse nome como cumprimento de uma promessa por ter a mãe resistido a um parto doloroso e difícil. Nunca tinha saído daquele vilarejo pobre e empoeirado, de ar seco e sol forte, na região desértica da costa andina, onde todos dependiam de uma velha e exaurida mineração existente nos arredores.
A população local constituída basicamente de indígenas e afrodescendentes havia sido excluída naquelas paragens inóspitas desde os tempos da colonização espanhola, ali acontecendo, ao natural, miscigenação entre esses grupos étnicos. A maioria dos homens se enterrava nos túneis da mina durante o dia e só viam a luz do sol aos domingos, quando freqüentavam a capelinha para assistir a prédica de algum frade que lá comparecia. Raros os que ficavam na superfície, vivendo de biscates ou se dedicando ao artesanato de prataria para passar o tempo.
Desde pequena, Guadalupe se empenhava para ter uma vida normal apesar de suas limitações. Pernas arqueadas, caminhava se apoiando num bastão. Pouco convivia com o pai negro que trabalhava na mina, mas ajudava a mãe índia nas tarefas domésticas e até buscava água em longínquos poços. Naquela comunidade parca de recursos, todos se ajudavam na medida do possível. Supriam ausência de um posto de saúde com a medicina das comadres que se transmitia de geração a geração. As notícias eram geradas no balcão da bodega e corriam de boca em boca.
Já moça, não tinha os pais e passou a ser adotada e respeitada por todos numa estima isenta de comiseração. Deficiente, não media esforços para se igualar e mostrar sua fé inabalável àqueles abatidos pelo desânimo que buscavam se aconselhar e encontrar esse incentivo que transbordava da sua férrea vontade de viver. Um ser iluminado vagando nas trevas desse universo sinistro. O corpo vergado e disforme encerrava uma alma pura irradiando paz e harmonia a quem dela se acercasse. Até então ninguém tomara qualquer atitude de repulsa por sua condição humana.
Embora isolado, o vilarejo não se sustentava com os recursos de que dispunha em plantações de hortas e pomares. E os porcos, caprinos e jumentos se criavam quase selvagens em vazios cochos e exíguas campinas. Algumas pessoas tinham de percorrer a pé longas trilhas levando seu incipiente artesanato até outras povoações e trazendo mantimentos na volta como formigas carregadoras. E ainda havia os andarilhos que por ali passavam sem rumo e não se quedavam muito tempo, impulsionados por uma falta de perspectiva local, sem qualquer oportunidade de adaptação.
E assim surgiu na vila Frei Rafael, um frade de batina imunda e surrada, barba amarelecida, cajado de peregrino e sandálias rotas por infindáveis caminhadas. Acomodou-se num canto da capela e foi se tornando fixo no confessionário e nas missas de domingo. Logo requisitou os serviços da beata Guadalupe Soledad para auxiliar nos serviços domésticos e litúrgicos que ela exerceria com todo esmero. Encantada com a afabilidade do religioso, foi cedendo aos seus caprichos mais íntimos e secretos a qualquer hora e em qualquer lugar que ele necessitasse.
Porém brota em Guadalupe o instinto da maternidade. Ela enxerga em Frei Rafael o agente concretizador desse sonho, suplica seguidas vezes para ser atendida sem encontrar nele a mínima correspondência, pois este se esquiva sempre do ato sacrílego. Tanto o intimida que ele perde o gosto por esse pequeno deslize. E comunica que o estão chamando numa paróquia distante, que deve ir lá, mas que volta em seguida. Mais tarde, ao pé do altar, Guadalupe repara na escrita de um papel amassado:
"Qur perdoasse os seus pecados, que fazia daquilo um ato de caridade..."

UM PERSONAGEM INESQUECÍVEL

Ao lado, uma colega comentava: “Fiquei com pena dele, acho até válido o seu desabafo, mas não vai adiantar nada”. A voz embargada pela emoção, ele havia concluído o seu protesto ante a disposição do liquidante nomeado pelo Banco Central, Adson Quintela Martins, de promover a cisão do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul em três instituições de fomento estaduais, na visão deste perfeitamente viável. Ele tratava esse cidadão como Senhor Interventor e reclamava da sua postura em não providenciar na recuperação da entidade.
Anteriormente, ele já costumava me solicitar opinião sobre alguns dos seus artigos que depois iria publicar no Jornal do Comércio. Nessa época, eu era mais adepto da hibernação daquele nosso Banco na condição de autarquia não financeira, como instituição prestadora de serviços. Baseava-me no artigo 20 dos Atos Constitutivos do Sistema Codesul/BRDE, o que nos permitiria subsistir como funcionários autárquicos de um quadro em extinção nos três Estados. Mas ele não admitia qualquer recuo, tinha a idéia fixa da imediata retomada das operações financeiras.
Em Porto Alegre, ele era uma voz isolada que procurava compor com os colegas de Florianópolis e Curitiba, mais afinados com o ideal da preservação da regionalidade desse estabelecimento, contrariando a opção gaúcha pelo banco de desenvolvimento estadual. Foi um dos incentivadores e dos raros subscritores da ação popular, patrocinada pelo advogado Antônio Carlos Gomes, contra a liquidação do BRDE, pela imediata volta a normalidade das operações de fomento à Região Sul.
Convivi com essa figura ao longo de todo esse tempo de lutas e posso testemunhar da sua vontade férrea, da sua convicção para reverter todo um processo já previamente orquestrado nas esferas federais, uma causa quixotesca. As cansativas viagens à Brasília, a família prejudicada, os problemas de saúde, os negócios particulares relegados a segundo plano, nada o demovia desta inesgotável capacidade de superar obstáculos. Inúmeras vezes o assisti frustrado ante consequências inesperadas, ante o rumo incerto dos acontecimentos, nunca porém o vi se prostrar na acomodação dos derrotados.
Luiz Carlos Beiller de Freitas, Freitinhas para os mais chegados, como Davi frente a Golias, fez a sua parte.
Artigo publicado em 1989, no Jornalzinho do BRDE.