quinta-feira, 9 de março de 2017

GENTILEZA DE AÇOUGUEIRO - /S. Costa Franco/

Na minha idade há grande perigo de me tornar repetitivo, contando histórias que já foram contadas. Especialmente quando se fez colunismo desde o outro milênio, ou, mais precisamente desde o ano de 1969. Confio em que o meu estoque de “causos” e anedotas seja bastante grande, para resistir a esses 48 anos de memórias registradas na imprensa, desde a “Voz da Serra", de Erechim, passando pelo velho Correio do Povo e a Zero Hora, de Porto Alegre, onde assinei umas cinco mil e duzentas crônicas ou comentários opinativos, até 1989, quando deixei de fazer estatísticas. Depois disso, aposentado, continuei escrevendo eventualmente, para diversos periódicos, em geral sem qualquer remuneração, mas ainda assim com o ânimo incontido de me comunicar com o público.
Vocês dirão que estou com a pauta esgotada, sem possibilidade de contar qualquer novidade. Mas como o      texto do meu livro de memórias foi encerrado em 2006, já sobram mais de dez anos sem a narrativa de vantagens ou fracassos, nem de observações sobre os outros viventes, que são fonte inesgotável de inspiração.
Minha pauta de agora tende a ser didática, atendendo às experiências de octogenário. Observo hoje as práticas civilizadas do comércio de varejo, onde a clientela é atendida segundo corretas prioridades, assegurada a preferência dos idosos e deficientes físicos, em geral mediante a prévia distribuição de senhas numeradas E me lembrei do tempo em que a desordem imperava, tanto nos guichês das diversões públicas quanto no balcão das repartições ou das casas de varejo. Pelo que me lembro, foram as dificuldades de abastecimento durante a 2ª. guerra mundial, que introduziram o saudável hábito das filas, então chamadas de “bichas”. Mas antes que a experiência das filas fosse aceita e assimilada pelo público, houve um tempo em que predominava quem reclamasse mais alto ou quem desfrutasse das simpatias do atendente.
É deste período o episódio que testemunhei, numa das cidades onde vivi, no açougue do Beto Cunha (o nome é fictício para não atrair eventualmente a ira do falecido). Com a freguesia se acotovelando junto ao balcão, o Beto era sozinho para cortar, pesar, e embrulhar os pesos de carne, além de receber o respectivo preço. Compreende-se que sofresse e se exasperasse. Foi então que assisti à divertida cena. A freguesa apressada para ir cozinhar o almoço, enquanto não era atendida, repetiu mais de uma vez o seu pedido, que, salvo engano, era de 1 quilo de paleta, sem osso. Com vinte anos de pesado serviço entre carnes e fressuras, ganchos, facas, chairas e balanças, o Beto Cunha não seria exatamente um gentleman com a freguesia, e muito menos com os impacientes. Depois de mais um pedido da freguesa, ele deu um corte fundo na paleta bovina e largou na balança o enorme pedaço, que devia regular uns 3 quilos.
- Tá bom assim, vizinha?
Assustada, a mulher contestou:
- Mas, Seu Beto, eu só quero l quilo.
- Ué, pediu três vezes!
Com a distribuição de senhas à freguesia, já não acontecem mais essas cenas caricatas. 

sexta-feira, 3 de março de 2017

A PONTE PÊNSIL - vista p/Sérgio da Costa Franco

Da minha janela, com vista para o Rio Mampituba e o Passo de Torres, descortino à esquerda a moderna ponte rodoviária, sólida, de concreto e plenamente confiável, pelo menos para veículos leves. Mas, olhando à direita, vejo a ponte pênsil, uma estrutura balouçante, que não me animo a utilizar em minhas caminhadas, mesmo se vou a curtas distâncias. Usei-a apenas uma vez e me arrependi. Jovens na idade das brincadeiras inconvenientes pulavam sobre a ponte, fazendo-a balançar perigosamente, pondo em risco a segurança dos velhinhos que se animavam a utilizá-la. Há um cartaz condenando essa prática imprudente, mas duvido que seja obedecido pela garotada. Vejo a ponte pênsil muito utilizada, inclusive por ciclistas e, em certas horas, suspeito que receba excesso de frequentadores.
No mesmo local, parece que existiu outrora outra ponte pênsil, bem mais precária, das qual possuo um pequeno quadro a óleo, de pintor local, que adquiri de um vendedor de rua, na Prainha, faz alguns anos. Era a única via de transporte a pé enxuto sobre o Mampituba.      O certo é que, em 1984, por iniciativa das duas prefeituras interessadas, a de Torres e a da cidade catarinense que a defronta, construiu-se a ponte atual, mais sólida, mais forte, com uma estrutura de cabos de aço, tabuado firme e guardas laterais de arame grosso. Parecia obra definitiva, para durar muitos anos e assegurar a glória de seus construtores.
O entusiasmo trouxe multidão de gaúchos e catarinenses à sua inauguração, superlotou-se o equipamento, e, justo no instante em que o vigário preparava a sua bênção, a ponte cedeu ao peso dos que a celebravam, jogando no rio o padre, os prefeitos e as autoridades todas, felizmente sem vítimas ou outras consequências, afora o susto e o inesperado banho.
O episódio caricato inspirou a “Décima da Ponte”, que Guido Muri incluiu em seu livro de “Remembranças de Torres”: “As comitivas chegaram,/ Uma era a catarina,/ Outra, do nosso torrão./ De cada lado, povo olhando/ E foguetes estrondando,/ Cada qual com seu prefeito/ E o povo satisfeito/ Espera a inauguração.// 
E continua mais adiante, o poeta-cronista: “Também as autoridades,/ Era um grupo em cada ponta/ Pra no meio se encontrar/ E a pênsil inaugurar./ Muita gente em cada bando/ E mal estavam chegando/ Foram n’água despencar.// Uns nadaram muito pouco/ E à velha ponte chegaram./ Pra outros foi só um banho/ E na pele nenhum lanho./ Do padre, a água benzida/ É a única coisa perdida/ Nesse mergulho tamanho.// 
Com esse lance de ópera bufa, que é de 33 anos atrás, inaugurou-se a ponte pênsil. Um dos motivos para não transitar por ela com muita tranquilidade.